Microcontos não publicados
Microcontos
A caixa
Como criminosos que escondem as
ignaras provas do crime, trouxemos a caixa de sapatos, imaculada de branco.
Tínhamo-la encontrado junto ao convento, num caminho de terra estreito entre
moitas marítimas, ali no chão. Como se alguém a deixasse fechada e
arrumada depois de calçar os sapatos mágicos que ela conteria. Eu e o Caló
não a compartilharíamos com ninguém, pois o achado era tão estranho quanto
desejoso. No caminho até à praia (não fomos para casa, local impróprio para
segredos adolescentes) fomos abrindo e fechando a caixa branca, enquanto os
comíamos um a um, doces e suculentos bolinhos de amêndoa e fios de ovos
frescos. Quem os terá escondido na caixa de sapatos?
Madame
A professora primária
obrigava-nos a vender uns selos de apoio aos caranguejos. Lá formávamos grupos
de dois, para correr de uma ponta a outra a estância balnear dos aristocratas
do Agosto azul. Nesse dia fiz parelha com o Caló, um campónio que tinha vindo
não sei donde e adorava construir casotas de Tarzan em cima de árvores
raquíticas. A nós coube-nos o lado poente da avenida. No caminho, armado em
esperto, tentei burilar uma estratégia para a minha timidez e de modo a
conseguirmos vender mais selos do que as outras equipas. Foi assim que me lembrei
de sugerir ao Caló que, depois de batermos às portas, deveríamos tratar as
mulheres por "madame" (onde é que eu tinha ouvido isto?); claro que o
Caló – esperto e viajado – retorquiu-me à martelada: Não pá, madame é a criada!
A morte
Quando o pai dele morreu, levei-o
silencioso. Andámos sem destino, mas a estranheza da morte levou-me a
caminhar para a mata, uma pequena floresta de eucaliptos, onde lembro de ter
disposto alguns sacos pretos com sementes. Ali, sentia-me protegido das
desgraças inapercebidas do mundo. Parando junto a um eucalipto, já muito alto e
magro, o meu amigo chorou. Teríamos nove, dez anos? Não me lembro bem. Mas sei
que depois de termos olhado o rio, ali mesmo à nossa frente, ele voltou a
lembrar-se de como era a vida. Só muito mais tarde compreenderia o seu
regresso. A noite passada tinha dormido debaixo do mesmo tecto, perto de
um pai morto. A mãe mantivera-se acordada ao lado do pai morto, sem apelar aos
vizinhos a dor da alma; e ele cumprira o prometido: só chorar no dia seguinte.
Os gatos
Os gatos eram pretos, como todos
os gatos que penso ter conhecido, andando ronrronadamente sobre o valado
branco. Do meu lado, do lado que olhava, terra batida e chapas velhas das
cabanas: um apport de cozinhas
proletárias e breves; do outro lado, do lado para o qual o gato olhava, a
estrumeira dos corpos do povo da fábrica. Entre mim e o gato, um arco de
flechas. Sabem, as varetas dos velhos guarda-chuvas, uma dobrada a fio de pesca
e a outra de ponta afiada na pedra de amolar da soleira da porta? Quase sempre a
flecha atravessava o pelo e o corpo do gato preto e ele caía do lado de lá, do
lado da estrumeira.
As moscas
Sim, as moscas andavam por todo o
lado, adejando asas e vibrando aragens finas no verão quente; seria Setembro,
talvez, pois o prenúncio do tempo da escola estava lá com elas. Serviam que nem
ginjas para os bicos sequiosos das ferifolhas, pequenos passeriformes que
poisavam sempre nos arbustos marinhos das dunas da praia. Nem precisava de
tapar a ratoeira; ela abanava com o vento das asas da mosca presa entre a
espada e a parede, ou melhor, espetada no arame do pingalhete à mercê da sombra
amarela da ave. Esta, por sua vez, sabia também o seu destino inexorável.
Os heróis
Não sei se vieram noutros verões.
Mas naquele, em Setembro, lembro-me bem: chegaram pelo rio, num barco de tábuas
húmidas e descoradas pelo tempo e atracaram por ali na areia da margem. Éramos
putos e recordo que os achámos estranhos. Seriam marido e mulher,
perguntávamo-nos. Percebíamos os dois com idades diferentes como fugidos a uma
justiça humana ou divina, não o sabíamos. Estiveram por ali uns tempos;
semanas, meses? Um dia, na maré vaza, na sua ausência, entrámos na embarcação à
procura de pistas, de uma história para viver e depois contar. Como heróis que
éramos nesses tempos. Mais tarde, aceitei que eles seriam mais heróicos do que
nós.